Por Amélia: Composição Humana


Sou formada de riscos e rachaduras, minha aparência apática permite que a luz trespasse através de mim e reflita em minha frente, obrigando-me a constatar que sou, de fato, transparente. Toda a solidez que um dia tive como humana se foi; a segurança de se locomover entre eventos e situações com integridade foi se desintegrando aos poucos, formando sobre minha pele pequenos cortes que romperam com toda a dureza de minha casca. Não nomeio minhas fragilidades com esse nome e sequer as enxergo dessa forma. Carrego, apesar da dor, orgulho de cada marca que irrompe em mim. Elas, ao contrário de tantos que percorreram o meu caminho e fugiram, permanecem comigo. Essas rachaduras parecem distantes, feitas em um passado esquecido cuja intenção é de fato esquecê-lo, entretanto jamais o faria, pois assim esqueceria de mim mesma.
Sou formada de cortes e cicatrizes, de uma angústia física que parecia mais suportável da qual guardava no peito.  Eles parecem agressivos, uma forma de rebeldia contra meu corpo e o meu ser, mas na verdade foram feitos sob circunstâncias opostas. Cada milímetro da pele irregular, desenhada por lâminas e cauterizadas pelo tempo foi uma tentativa, uma luta silenciosa e dolorida que travei para que voltasse a sentir que estava viva. Dor é algo que todo ser humano sente. Alguns carregam a habilidade de suportar mais sem senti-la ao todo, outros a sentem sem qualquer esforço. Mas, ao fim, todos a sentem. É isso o que nos torna quem nós somos. E era isso o que eu tanto sentia que, a certo ponto, acostumei-me com sua presença e acabei por ignorá-la. E tudo se tornou vazio.
Sou formada por falhas e histórias conturbadas, mas não minhas. O que hoje sou não foi irremediavelmente minha culpa, apenas as consequências das ações de pessoas que incapazes de entender o significado da palavra empatia, ofereceram a mim a falta dela. Isso parece um modo de refutar a culpa que alimento dentro de mim, uma forma de defesa desesperada que faço para não enxergar que minhas ações me moldaram. Contudo, não. A negligência bateu em minha porta antes que eu soubesse o que são ações. E não se pode culpabilizar uma pessoa por não saber lutar, uma vez que isso jamais a fora ensinada. Se tornar irrelevante é um sentimento devastador. Todo o mito da sagrada existência acaba se transformando em, literalmente, um mito. Eu coexisti. Perceber isso, ao contrário do que se parece, é bem fácil. Basta um olhar frio de seus pais quanto a você e o grande esforço que realizam para varrer para debaixo do tapete o que você é. Quando você grita por socorro, pede por um colo como qualquer outra criança e um par de braços seguros que podem lhe proteger do mundo. Quando enfim você nota que aqueles braços não te consolam, somente a empurra contra a parede e para o seu medo, você percebe que é irrelevante. Sua existência não existe. Você apenas está ali. Coexistindo.
Sou formada de quinze longas translações, cinco mil quatrocentos e setenta e oito dias que parece ser um número pequeno, mas carrega em si tantos fantasmas quanto um século. E bastou apenas um número muito menor que esse para me nomear. Não sou uma pessoa, um ser humano e muito menos existo. Sou um transtorno. Resumiram todos os meus dias de angústia e as noites de choro em um acontecimento psiquiátrico. Sou um rótulo. Objeto de estudo e análise. Sou perigosa para mim e para a sociedade indiferente ao meu redor. Se sou o que sou, quem me moldou é o quê? Por que eles não estão todos aqui, também? Por que também não têm seus braços perfurados, pulseiras de identificação em seus braços, um quarto branco isolado, um quadro de horários de medicamentos, uma ficha com as falhas de sua mente e por que também não estão aprisionados, aos montes, como eu estou? Por que somos nós os rotulados como instáveis e perigosos?
Somos formados do produto e da doença das pessoas. De suas fachadas perfeitas, de suas famílias perfeitas e seus comportamentos perfeitos. Somos formados de cada ajuda ignorada, de cada padronização que nos expulsavam do grupo de humanos, de cada dedo apontado aos nossos defeitos, de cada comentário maldoso e de cada ação monstruosa. Abuso físico, mental, sexual. Das justificativas de cada ato. Somos formados por seres humanos e sua incrível falta de se colocar nos sapatos do outro. Ao fim, somos formados de loucura, mas o que é loucura? É reagir diante de uma opressão? É gritar por socorro? Por ajuda? É se desesperar quando ninguém o ouve, mesmo que você tente, das formas mais irresponsáveis, chamar a atenção de alguém? Ou é quando nos mutilamos? Talvez quando tentamos por um fim em tudo. Loucura é isso. Quando tentamos parar de sofrer. Mudem o seu conceito de loucura, por favor. Nós somos os normais. Nós somos humanos, mais ainda do que vocês. Porque nós sofremos. Sentimos dor. Rejeição. Vocês apenas os ignoram, como programados para fazer. Vocês chamam isso de ser forte e acabam causando aflição em outra pessoa para equilibrar o conflito que vocês têm dentro de si. E essa pessoa machucada reflete o que você é. Então, você é o louco.

Eu não sou louca. Sou humana. Espero algum dia conhecer um humano, também. 

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